Topo
Line
CAPÍTULO UM
Faltando pouco para eu completar meu décimo sétimo ano
de vida minha mãe resolveu que eu estava deprimida, provavelmente
porque quase nunca saía de casa, passava horas na cama,
lia o mesmo livro várias vezes, raramente comia e dedicava grande
parte do meu abundante tempo livre pensando na morte.
Sempre que você lê um folheto, uma página da Internet ou
sei lá o que mais sobre câncer, a depressão aparece na lista dos
efeitos colaterais. Só que, na verdade, ela não é um efeito colateral
do câncer. É um efeito colateral de se estar morrendo. (O
câncer também é um efeito colateral de se estar morrendo.
Quase tudo é, na verdade.) Mas a mamãe achava que eu precisava
de tratamento, então me levou ao meu médico comum, o
Jim, que concordou que eu, de fato, estava nadando numa depressão
paralisante e totalmente clínica e, portanto, ele ia trocar
meus remédios e, além disso, eu teria que frequentar um
Grupo de Apoio uma vez por semana.
O grupo era formado por um elenco rotativo de pessoas
com várias questões psicológicas desencadeadas pelos tumores.
A razão de o elenco ser rotativo? Efeito colateral de se estar
morrendo.
12 John Green
O Grupo de Apoio era megadeprimente, óbvio. A reunião
acontecia toda quarta-feira no porão de uma igreja episcopal
— uma construção no formato de cruz com paredes de pedra.
Nós nos sentávamos em uma roda bem no meio da cruz:
onde os dois pedaços de madeira um dia se cruzaram, onde
esteve o coração de Jesus.
Sabia disso porque o Patrick, Líder do Grupo de Apoio e
o único naquele lugar com mais de dezoito anos, falava sobre o
coração de Jesus todo raio de reunião, sobre como nós, jovens
sobreviventes do câncer, estávamos sentados bem no sagrado
coração de Cristo, e tal.
Bem, era assim que acontecia no coração do Senhor: os seis
ou sete ou dez de nós chegávamos lá a pé/de cadeira de rodas,
comíamos um pouco daqueles biscoitos velhos com limonada,
sentávamos na Roda da Esperança e ouvíamos o Patrick contar
pela milésima vez a história ultradeprimente e superinfeliz
da sua vida — sobre ter tido câncer nas bolas e acharem que ele
ia morrer, mas não morreu, e ali estava, já adulto, no porão de
uma igreja na 137a cidade mais linda dos Estados Unidos, divorciado,
viciado em videogames, quase sem amigos, levando
uma vida sem graça explorando seu fantástico passado com
câncer, ralando para terminar um mestrado que não vai melhorar
sua perspectiva de progresso na carreira e esperando,
como todos nós, que a espada de Dâmocles traga para ele o
alívio do qual escapou muitos anos atrás, quando o câncer levou
seus testículos e lhe deixou algo que só a alma mais generosa
poderia chamar de vida.
E VOCÊS TAMBÉM PODEM TER ESSA SORTE!
Aí nós nos apresentávamos: Nome. Idade. Diagnóstico. E
como estávamos no dia. Meu nome é Hazel, dizia na minha vez.
Dezesseis. Tireoide, originalmente, mas com uma respeitável
colônia satélite há muito tempo instalada nos pulmões. E está
tudo bem comigo.
A CULPA É DAS ESTRELAS 13
Depois do último da roda, o Patrick sempre perguntava se
alguém queria se abrir. E aí começava a punheta grupal de
apoio mútuo: todo mundo falando de lutar, combater, vencer,
remitir e examinar. Para não ser injusta com o Patrick, ele nos
deixava falar da morte. Mas a maioria ali não estava morrendo.
A maioria viveria até a idade adulta. Como o Patrick.
(Isso signifi ca que havia muita competição, com todo mundo
querendo vencer não só o câncer, mas também as outras pessoas
da roda. Tipo, eu sei que não faz o menor sentido, mas quando
você ouve que tem, por exemplo, vinte por cento de chance de viver
cinco anos, e faz as contas e conclui que isso é uma chance em
cinco… você olha em volta e pensa, como qualquer pessoa saudável
faria: eu preciso durar mais que quatro desses desgraçados.)
A única coisa que salvava no Grupo de Apoio era um menino
chamado Isaac, um magrelo de rosto comprido, com cabelos
loiros e lisos que cobriam um de seus olhos.
E seu problema eram os olhos. Ele teve um tipo inacreditavelmente
improvável de câncer ocular. Um olho foi extraído
quando ele era pequeno, e agora o Isaac usava um par de óculos
fundo de garrafa que fazia os olhos (tanto o de verdade
quanto o de vidro) parecerem sobrenaturalmente grandes,
como se a cabeça inteira fosse basicamente o globo ocular de
mentira e o de verdade olhando para você. Pelo que pude entender
das raras vezes que ele se abriu para o grupo, uma recorrência
colocou o olho que resta em perigo mortal.
O Isaac e eu nos comunicávamos quase exclusivamente
por meio de suspiros. Cada vez que alguém falava de dietas
anticâncer, de cheirar cartilagem de tubarão em pó ou sei lá,
ele me olhava e suspirava de leve. Eu balançava a cabeça em um
movimento microscópico e dava um suspiro em resposta.
Então o Grupo de Apoio deu o que tinha de dar, e depois de algumas
semanas eu passei a surtar quando tocavam no assunto.
14 John Green
Na verdade, na quarta-feira em que conheci o Augustus Waters,
tinha feito de tudo para me livrar da ida à sessão de grupo
enquanto estava sentada no sofá com a mamãe, no meio da
terceira parte da maratona de doze horas da temporada anterior
de America’s Next Top Model, que, confesso, já tinha visto,
mas mesmo assim…
Eu: “Eu me recuso a ir ao Grupo de Apoio.”
Mamãe: “Um dos sintomas da depressão é a falta de interesse
em participar de atividades.”
Eu: “Por favor, mãe, deixe eu fi car vendo America’s Next Top
Model. Isso é uma atividade.”
Mamãe: “Televisão é passividade.”
Eu: “Pô, mãe, por favor…”
Mamãe: “Hazel, você já é adolescente. Não é mais criancinha.
Precisa fazer amigos, sair de casa, viver sua vida.”
Eu: “Se você quer que eu aja como adolescente, não me
mande para o Grupo de Apoio. Compre uma carteira de identidade
falsa para mim e aí eu vou sair à noite, beber vodca e
tomar baseado.”
Mamãe: “Para início de conversa, não se toma baseado.”
Eu: “Viu? Esse é o tipo de coisa que eu saberia se você comprasse
uma carteira de identidade falsa para mim.”
Mamãe: “Você vai para o Grupo de Apoio.”
Eu: “SAAAAAAACO.”
Mamãe: “Hazel, você merece uma vida.”
Aquilo me fez calar a boca, mesmo não tendo conseguido entender
o que a ida ao Grupo de Apoio tinha a ver com a defi nição
de vida. De qualquer jeito, concordei em ir — depois de negociar o
direito de gravar o episódio e meio do ANTM que eu ia perder.
Ia ao Grupo de Apoio pelo mesmo motivo que uma vez
deixei enfermeiras com um ano e meio de faculdade me envenenarem
com substâncias químicas de nomes exóticos: queria
fazer meus pais felizes. Só tem uma coisa pior nesse mundo
A CULPA É DAS ESTRELAS 15
que bater as botas aos dezesseis anos por causa de um câncer:
ter um fi lho que bate as botas por causa de um câncer.
Mamãe parou na entrada de carros circular atrás da igreja às
4h56. Fingi que estava ajeitando o cilindro de oxigênio por um
segundo só para ganhar tempo.
— Quer que eu o carregue até lá dentro?
— Não, está tudo bem — respondi.
O cilindro verde só pesava uns poucos quilos e eu tinha um
carrinho de aço para transportá-lo. Aquilo me fornecia dois litros
de oxigênio por minuto através de uma cânula, um tubo
transparente que se dividia bem embaixo do meu pescoço, passava
por trás das orelhas e se juntava de novo nas narinas. A
geringonça era necessária porque meus pulmões faziam um
péssimo trabalho como pulmões.
— Eu te amo — ela disse, enquanto eu saltava do carro.
— Eu também, mãe. Vejo você às seis.
— Faça amigos! — ela gritou pela janela abaixada enquanto
eu me distanciava.
Não quis usar o elevador porque isso é o tipo de coisa que
você faz nos seus “Últimos dias no Grupo de Apoio”, então fui
de escada. Peguei um biscoito, coloquei um pouco de limonada
num copo descartável e me virei.
Um garoto olhava fi xamente para mim.
Eu tinha quase certeza de nunca ter visto aquele cara na
vida. Alto e magro, mas musculoso, ele fazia a cadeira de plástico,
daquelas usadas em sala de aula, parecer minúscula. Cabelo
acaju, liso e curto. Parecia ter a minha idade, talvez um
ano mais velho, e estava sentado com o cóccix na beirada da
cadeira, uma postura péssima, com uma das mãos enfi ada até
a metade no bolso da calça jeans escura.
Desviei o olhar, repentinamente consciente da quantidade
infi nita de coisas erradas em mim. Eu estava com uma calça
16 John Green
jeans velha, que algum dia foi justa mas que agora fi cava folgada
nos lugares mais estranhos, e uma camiseta de malha amarela
com o nome de uma banda da qual eu nem gostava mais.
Tinha também meu cabelo: cortado tipo Príncipe Valente, e eu
nem tive a preocupação de, puxa, dar uma escovada nele. Além
disso, minhas bochechas estavam ridiculamente redondas,
como as de um esquilo, efeito colateral do tratamento. Eu era
uma pessoa de proporções normais com um balão no lugar da
cabeça. Isso sem falar do inchaço nos tornozelos. Mesmo assim,
dei uma espiada rápida e os olhos dele ainda estavam grudados
em mim.
Foi então que entendi o verdadeiro sentido de aquilo ser
chamado de contato visual.
Andei até a roda e me sentei ao lado do Isaac, a duas cadeiras
do garoto. Olhei de novo, rapidamente. Ele ainda me observava.
Na boa, vou logo dizendo: ele era um gato. Se um cara que
não é gato encara você sem parar, isso é, na melhor das hipóteses,
esquisito, e na pior, algum tipo de assédio. Mas se é um cara
gato… na boa…
Peguei meu celular e apertei uma tecla para ver as horas. Os
lugares na roda foram ocupados por azarados de doze a dezoito
anos e, então, o Patrick deu início aos trabalhos com a prece
da serenidade: Senhor, dê-me serenidade para aceitar as coisas que
não posso modifi car, coragem para modifi car as que posso, e sabedoria
para reconhecer a diferença entre elas. O garoto ainda estava me
encarando. Senti meu rosto fi car vermelho.
Por fi m, resolvi que a melhor estratégia seria também olhar
fi xamente para ele. Afi nal de contas, os garotos não detêm o
monopólio da Atividade Encaradora. Foquei nele enquanto
o Patrick explicava pela milésima vez sua ausência de bolas
etc., e aquilo logo virou um Jogo do Sério. Depois de um tempo
o garoto sorriu e, até que enfi m, desviou os olhos azuis.
A CULPA É DAS ESTRELAS 17
Quando me olhou de novo, arqueei as sobrancelhas como que
dizendo: ganhei.
Ele deu de ombros. O Patrick prosseguiu e, enfi m, a hora
das apresentações chegou.
— Isaac, talvez você queira ser o primeiro hoje. Sei que está
enfrentando um grande desafi o no momento.
— É — o Isaac disse. — Meu nome é Isaac. Tenho dezessete
anos. Parece que vou precisar ser operado em duas semanas,
depois vou fi car cego. Não estou reclamando nem nada porque
sei que poderia ser pior, como no caso de alguns aqui, mas,
quer dizer, fi car cego é, tipo, uma droga. Ter uma namorada
me ajuda. Além de amigos como o Augustus. — Ele balançou a
cabeça na direção do garoto, que agora tinha nome. — Pois
é… — continuou. Ele estava olhando para as mãos, os dedos
cruzados parecendo o topo de uma tenda indígena. — Não há
nada que se possa fazer para mudar isso.
— Estamos do seu lado, Isaac — o Patrick falou. — Vamos
lá, pessoal, digam para o Isaac ouvir.
E então todos nós, em uníssono, dissemos:
— Estamos do seu lado, Isaac.
O Michael foi o próximo. Ele tinha doze anos. Sofria de
leucemia. Desde que se entendia por gente. E estava bem. (Pelo
menos foi o que disse. Ele desceu de elevador.)
A Lida tinha dezesseis anos e era bonita o sufi ciente para ser
alvo do olhar do cara gato. Era frequentadora assídua das reuniões
— estava em um longo período de remissão de um câncer
de apêndice, que eu nem sabia que existia. Ela disse — como em
todas as outras vezes que eu fui às sessões do grupo — que se
sentia forte, o que para mim, com aquela chuvinha de oxigênio
fazendo cosquinhas no nariz, era o mesmo que tirar onda.
Outros cinco falaram antes do cara gato. Ele deu um sorrisinho
quando chegou sua vez. A voz era baixa, aveludada e supersensual.
18 John Green
— Meu nome é Augustus Waters — disse. — Tenho dezessete
anos. Tive um pouco de osteossarcoma um ano e meio
atrás, mas só estou aqui hoje porque o Isaac pediu.
— E como está se sentindo? — o Patrick perguntou.
— Ah, maravilha. — Augustus Waters deu um sorrisinho.
— Estou numa montanha-russa que só vai para cima,
amigão.
Quando chegou minha vez, eu disse:
— Meu nome é Hazel. Tenho dezesseis anos. Tireoide com
metástase nos pulmões. Estou bem.
A hora passou rápido. Lutas foram recontadas, batalhas ganhas
em guerras que com certeza seriam perdidas; a esperança
virou tábua de salvação; famílias foram celebradas e recriminadas;
foi consenso que os amigos não entendiam nada; lágrimas
foram compartilhadas, e consolo, oferecido. Nem eu nem o
Augustus Waters tínhamos soltado uma palavra, até que o Patrick
disse:
— Augustus, talvez você queira falar de seus medos para o
grupo.
— Meus medos?
— É.
— Eu tenho medo de ser esquecido — disse ele de bate-pronto.
— Tenho medo disso como um cego tem medo de escuro.
— Calma aí… — disse Isaac, abrindo um sorriso.
— Estou sendo insensível? — perguntou o Augustus. — Eu
posso ser bem cego quando o assunto são os sentimentos das
outras pessoas.
O Isaac estava rindo, mas o Patrick levantou um dedo, repreendendo-
o.
— Por favor, Augustus. Voltemos a você e às suas questões.
Disse que tem medo de ser esquecido?
— É — respondeu o Augustus.
O Patrick pareceu meio perdido.
A CULPA É DAS ESTRELAS 19
— Alguém, ahn, alguém gostaria de fazer algum comentário?
Eu não frequentava uma escola de verdade havia três anos.
Meus melhores amigos eram meus pais. Meu terceiro melhor
amigo era um escritor que nem sabia que eu existia. Eu era relativamente
tímida — de jeito nenhum o tipo que levanta a
mão para falar.
E, mesmo assim, só dessa vez, resolvi abrir o verbo. Levantei
a mão, e o Patrick, a satisfação estampada na cara, disse:
— Hazel!
Eu estava, tenho certeza de que foi isso o que ele pensou,
me abrindo. “Me tornando parte do grupo.”
Olhei na direção do Augustus Waters, que me encarava.
Dava quase para ver através dos olhos dele, de tão azuis.
— Vai chegar um dia — eu disse — em que todos vamos estar
mortos. Todos nós. Vai chegar um dia em que não vai sobrar
nenhum ser humano sequer para lembrar que alguém já
existiu ou que nossa espécie fez qualquer coisa nesse mundo.
Não vai sobrar ninguém para se lembrar de Aristóteles ou de
Cleópatra, quanto mais de você. Tudo o que fi zemos, construímos,
escrevemos, pensamos e descobrimos vai ser esquecido e
tudo isso aqui — fi z um gesto abrangente — vai ter sido inútil.
Pode ser que esse dia chegue logo e pode ser que demore milhões
de anos, mas, mesmo que o mundo sobreviva a uma explosão
do Sol, não vamos viver para sempre. Houve um tempo
antes do surgimento da consciência nos organismos vivos, e
vai haver outro depois. E se a inevitabilidade do esquecimento
humano preocupa você, sugiro que deixe esse assunto para lá.
Deus sabe que é isso o que todo mundo faz.
Eu tinha aprendido aquilo com meu já citado terceiro
melhor amigo, Peter Van Houten, o autor recluso de Uma
aflição imperial — de todos os meus livros, o mais próximo
de uma Bíblia. Peter Van Houten era a única pessoa que eu
20 John Green
conhecia que parecia: (a) entender o que era estar morrendo,
e (b) não ter morrido.
Assim que terminei fez-se um longo silêncio, e eu pude ver
um sorriso se abrindo de um canto ao outro no rosto do Augustus
— não o tipo de sorriso cafajeste do garoto tentando
parecer sexy ao me encarar, mas um sorriso sincero, quase
maior que a cara dele.
— Caramba! — disse ele baixinho. — Não é que você é mesmo
demais?
Nós dois não falamos mais nada até o fi m da reunião, quando
todos se deram as mãos e o Patrick nos guiou em uma prece.
— Senhor Jesus Cristo, estamos aqui reunidos em Seu coração,
literalmente em Seu coração, como sobreviventes do câncer.
O Senhor e somente o Senhor nos conhece como conhecemos
a nós mesmos. Nos guie pela vida e para a Luz em nossos períodos
de provação. Oremos pelos olhos do Isaac, pelo sangue do
Michael e do Jamie, pelos ossos do Augustus, pelos pulmões da
Hazel, pela garganta do James. Oremos para que o Senhor consiga
nos curar e para que possamos sentir Seu amor e Sua paz,
que excedem todo o entendimento. E nos lembremos em nossos
corações daqueles que um dia conhecemos, amamos e que
foram para a Sua casa: Maria, Kade, Joseph, Haley, Abigail, Angelina,
Taylor, Gabriel…”
A lista era grande. Tem muita gente morta no mundo. E
enquanto o Patrick continuava a ladainha, lendo a relação em
uma folha de papel porque era muito comprida para ser decorada,
fi quei de olhos fechados, tentando elevar os pensamentos
em oração, mas a maior parte do tempo imaginava o dia
em que meu nome ocuparia um lugarzinho ali, bem no fi m da
lista, quando ninguém mais está prestando atenção.
Quando o Patrick acabou, entoamos juntos aquele mantra
idiota — VIVENDO O MELHOR DA NOSSA VIDA HOJE — e
foi o fi m da reunião. O Augustus Waters empurrou o corpo
A CULPA É DAS ESTRELAS 21
para fora da cadeira e caminhou na minha direção. O andar
dele era tão cafajeste quanto o sorriso. Ele parou na minha
frente, mas manteve uma certa distância para eu poder olhá-lo
nos olhos sem ter de esticar o pescoço.
— Qual é o seu nome? — ele perguntou.
— Hazel.
— Não, o nome completo.
— Ahn, Hazel Grace Lancaster.
Ele ia dizendo alguma coisa quando o Isaac se aproximou.
— Só um instante — falou, levantando um dedo, e virou-se
para o Isaac. — Isso foi pior do que você tinha dito, na verdade.
— Eu disse que era um tédio.
— Por que você se dá o trabalho de vir aqui?
— Sei lá. Meio que ajuda…?
O Augustus inclinou o corpo achando que assim eu não
conseguiria ouvi-lo.
— Ela vem sempre? — Não deu para escutar o comentário
do Isaac, mas o Augustus respondeu: — Quer saber? — Ele pegou
o Isaac pelos ombros e deu meio passo para trás. — Conte
a Hazel da ida ao médico.
O Isaac apoiou uma das mãos na mesa de biscoitos e virou
o olho enorme para mim.
— Tá, é que eu fui ao médico hoje de manhã e estava falando
para o meu cirurgião que preferiria ser surdo a ser cego. E
ele disse: “Não é assim que as coisas funcionam.” Aí eu falei,
tipo: “É, eu sei que não é assim; só estou dizendo que preferia
ser surdo a ser cego se pudesse escolher, mas sei que não posso.”
E ele: “Bem, a boa notícia é que você não vai fi car surdo.”
Eu disse: “Obrigado por esclarecer que meu câncer no olho
não vai me deixar surdo. É muita sorte minha ter um gênio
como você me operando.”
— Ele é mesmo um gênio — falei. — Vou tentar arrumar
um câncer qualquer no olho para poder conhecer esse cara.
22 John Green
— Boa sorte. Então, tá. Já vou indo. A Monica está me esperando.
Preciso olhar bastante para ela enquanto posso.
— Counterinsurgence amanhã? — o Augustus perguntou.
— Com certeza. — O Isaac deu meia-volta e subiu as escadas
correndo, pulando os degraus de dois em dois.
Augustus Waters se virou para mim:
— Literalmente.
— Literalmente? — perguntei.
— Estamos literalmente no coração de Jesus… Achei que
estivéssemos no porão de uma igreja, mas estamos literalmente
no coração de Jesus.
— Alguém deveria contar isso para Jesus — falei. — Quer dizer,
deve ser perigoso fi car guardando crianças com câncer no coração.
— Eu mesmo poderia contar — o Augustus falou —, mas,
para minha infelicidade, estou literalmente enterrado no coração
Dele, então Ele não vai conseguir me ouvir.
Eu ri. O Augustus balançou a cabeça, me olhando.
— O que foi? — perguntei.
— Nada — ele respondeu.
— Por que você está olhando para mim desse jeito?
Ele deu um sorrisinho.
— Porque você é bonita. Eu gosto de olhar para pessoas
bonitas, e faz algum tempo que resolvi não me negar os prazeres
mais simples da existência humana. — Um silêncio constrangedor
se seguiu. Mas o Augustus quebrou o gelo. — Quer
dizer, principalmente porque, como você deliciosamente observou,
tudo isso vai acabar em total esquecimento, e tal…
Eu meio que engasguei, ou suspirei, ou soltei o ar de um
jeito que pareceu quase uma tosse, e disse:
— Eu não sou boni…
— Você é tipo uma Natalie Portman milenar. Tipo a Natalie
Portman em V de Vingança.
— Não vi esse fi lme — falei.
A CULPA É DAS ESTRELAS 23
— Sério? — ele perguntou. — Garota linda, de cabelo curto,
rejeita a autoridade e não consegue resistir a um cara que
ela sabe que vai ser um problema. É sua autobiografi a, pelo
menos até aqui, pelo que posso ver.
Cada sílaba que saía da boca dele fl ertava comigo. O.k., ele
meio que me deixava excitada. Eu nem sabia que garotos podiam
me deixar excitada — pelo menos não, tipo, na vida real.
Uma menina mais nova passou por nós.
— E aí, Alisa. Tudo bem? — ele perguntou.
Ela sorriu e balbuciou:
— Oi, Augustus.
— Gente do Memorial — ele explicou.
Memorial era o grande hospital de pesquisas.
— Qual você frequenta?
— O Hospital Pediátrico — respondi, meu tom de voz mais
baixo do que eu pretendia. Ele fez que sim com a cabeça. A conversa
parecia ter chegado ao fi m. — Bem — falei, mexendo a cabeça
vagamente na direção dos degraus que levavam para fora
do Coração Literal de Jesus. Inclinei o carrinho do oxigênio
para apoiá-lo nas rodinhas e comecei a andar. O Augustus foi
mancando ao meu lado. — Então, a gente se vê na próxima, talvez?
— perguntei.
— Você deveria assistir — ele falou. — Ao V de Vingança,
quero dizer.
— Tá. Vou ver se acho para assistir.
— Não. Comigo. Na minha casa — ele disse. — Agora.
Parei de andar.
— Eu mal conheço você, Augustus Waters. Você pode muito
bem ser o assassino do machado.
Ele concordou.
— Tem toda razão, Hazel Grace.
E passou por mim, os ombros dando forma à camisa polo
verde, as costas retas, os passos da direita um pouco mais mar-
24 John Green
cantes enquanto andava fi rme e confi ante apoiado no que eu
determinei ser uma prótese. Às vezes o osteossarcoma leva um
dos membros só para dar uma sondada em você. Depois, se
gostar, leva o restante.
Eu o segui escada acima, devagar, fi cando para trás. Degraus
não são o forte dos meus pulmões.
Aí fomos do coração de Jesus até o estacionamento, o frescor
da brisa da primavera na medida certa, a luz do fi m de tarde
divina em sua nocividade.
Mamãe não tinha chegado ainda, o que era estranho, porque
ela quase sempre estava lá esperando por mim. Olhei em
volta e vi que uma garota alta, morena e boazuda imprensava
o Isaac na parede de pedra da igreja, beijando o menino de um
jeito quase agressivo. Estávamos tão perto que eu podia escutar
os ruídos estranhos das duas bocas grudadas, e ouvi o Isaac
dizendo “sempre”, e ela respondendo com “sempre” também.
O Augustus apareceu de repente ao meu lado e sussurrou:
— Eles são grandes adeptos de demonstrar afeto em público.
— Qual é a do “sempre”?
O ruído da troca de saliva aumentou de intensidade.
— “Sempre” é o lema deles. Sempre vão se amar, e tal. Pelos
meus cálculos, e sendo bastante conservador, eles devem ter
trocado quatro milhões de mensagens de texto com a palavra
sempre no ano passado.
Mais dois carros chegaram, levando embora o Michael e a
Alisa. Aí sobramos só o Augustus e eu, observando o Isaac e a
Monica, que continuavam frenéticos, como se não estivessem
encostados na parede de um local de oração. Ele pôs a mão no
peito dela, por cima da blusa, e apalpou o mamilo, a mão imóvel
enquanto os dedos se mexiam. Fiquei me perguntando se
aquilo seria gostoso. Não parecia, mas resolvi perdoar o Isaac
levando em conta o fato de que ele estava para fi car cego. Os
sentidos devem aproveitar enquanto ainda há apetite, e tal.
A CULPA É DAS ESTRELAS 25
— Imagine a última ida de carro até o hospital — falei, baixinho.
— A última vez que você vai dirigir um carro.
Sem me olhar, o Augustus disse:
— Você está atrapalhando a minha vibe aqui, Hazel Grace.
Estou tentando observar o amor adolescente em sua esplendorosa
estranheza.
— Acho que ele está machucando o peito dela — comentei.
— É. É difícil saber ao certo se ele está tentando excitar a
menina ou fazer um exame de mama.
Aí o Augustus colocou a mão no bolso e tirou de lá, por
incrível que pareça, um maço de cigarros. Levantou a tampa da
caixinha e colocou um cigarro na boca.
— Isso é sério? — perguntei. — Você acha isso legal? Ai, meu
Deus, você acabou de estragar a coisa toda.
— Que coisa toda? — ele perguntou, virando para mim.
O cigarro pendia apagado da boca, do canto que não sorria.
— A coisa toda em que um garoto que não é pouco atraente
ou pouco inteligente ou, aparentemente, de forma alguma
pouco tolerável me encara e chama minha atenção para utilizações
incorretas da literalidade e me compara a atrizes e me
convida para ver um fi lme na casa dele. Mas é claro que sempre
tem uma hamartia e a sua é que, ai, meu Deus, mesmo você
TENDO TIDO UM RAIO DE UM CÂNCER ainda dá dinheiro
para uma empresa em troca da chance de ter MAIS CÂNCER.
Ai, meu Deus. Deixe eu só dizer para você como é não conseguir
respirar? É UM INFERNO. Totalmente decepcionante.
Totalmente.
— Uma hamartia? — ele perguntou, o cigarro ainda na boca.
Aquilo deixava sua mandíbula contraída. E a linha da mandíbula
dele, infelizmente, era tudo…
— Uma falta trágica — expliquei, dando as costas para ele.
Dei um passo na direção do meio-fi o, deixando o Augustus
Waters para trás, e foi então que ouvi um carro dando a partida
26 John Green
mais adiante na rua. Era a mamãe. Ela tinha fi cado ali, esperando
que eu, tipo, fi zesse amigos ou coisa assim.
Senti um misto de decepção e raiva crescendo em mim.
Nem sei direito que sentimento era aquele, sério, só que havia
muito dele, e eu queria dar um soco na cara do Augustus Waters
e ao mesmo tempo trocar meus pulmões por outros que não
fossem péssimos. Eu estava de pé bem na pontinha do meio-
-fi o com meu All-Star Chuck Taylors, o cilindro de oxigênio no
carrinho ao meu lado parecendo aquela bola de ferro que fi ca
presa com uma corrente no tornozelo de um prisioneiro, e na
hora que minha mãe ia encostando o carro senti a mão dele
pegar a minha.
Puxei a mão mas me virei para ele.
— Eles não matam se você não acender — disse ele quando
mamãe parou junto ao meio-fi o. — E eu nunca acendi nenhum.
É uma metáfora. Tipo: você coloca a coisa que mata entre os
dentes, mas não dá a ela o poder de completar o serviço.
— É uma metáfora — falei, hesitante.
Mamãe esperava, quieta.
— É uma metáfora — ele repetiu.
— Você determina seu comportamento com base nas ressonâncias
metafóricas…
— Ah, é. — Ele sorriu. O sorriso largo, meio bobo e sincero.
— Sou um grande adepto da metáfora, Hazel Grace.
Eu me virei para o carro. Dei uma batidinha na janela. Que
se abriu.
— Vou ver um fi lme com o Augustus Waters — falei. — Grave,
por favor, os próximos episódios da maratona do ANTM
para mim.